Apesar da oposição de igrejas cristãs tradicionais, igrejas evangélicas e grupos ateus, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara aprovou parecer recomendando a ratificação da Concordata firmada no final do ano passado entre o Brasil e o Vaticano. A proposta vem tramitando em regime de urgência, sob forte pressão da Igreja Católica, e, graças a um acordo de lideranças, poderá ser submetida à votação de plenário nos próximos dias. Se for aprovada, seguirá para o Senado.
Envolvendo temas que sempre deram margem a polêmicas, como ensino religioso nas escolas públicas de um Estado laico, os 20 artigos da Concordata assinada pelo presidente Lula e pelo papa Bento XVI foram negociados durante um ano. Sob a justificativa de reunir leis esparsas e dar forma jurídica a um intercâmbio que já existia, a iniciativa partiu do Vaticano. Durante as negociações, o Itamaraty recusou as propostas de oficialização de feriados católicos e permissão para a entrada de missionários em áreas indígenas, mas acatou as demais solicitações do Vaticano.
Além da questão do ensino religioso, três pontos do acordo merecem destaque. O primeiro é a concessão de isenção fiscal para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas eclesiásticas. O segundo é a manutenção, com recursos do Estado brasileiro, do patrimônio cultural da Igreja Católica, como prédios, acervos e bibliotecas. O terceiro é isenção para a Igreja Católica de cumprir as obrigações impostas pelas leis trabalhistas brasileiras.
Independentemente de suas implicações morais, essas três concessões ao Vaticano esbarram em problemas jurídicos e são incompatíveis com o Estado laico que nossas Constituições consagram desde a proclamação da República, no final do século 19. A concessão de isenção fiscal para pessoas jurídicas eclesiásticas, por exemplo, pode abrir um perigoso precedente, pois as demais igrejas sentir-se-ão estimuladas a invocar o princípio da isonomia para exigir o mesmo benefício. A Constituição, na alínea b do inciso VI do artigo 150, proíbe a União de instituir impostos sobre “templos de qualquer culto”. Tributaristas alegam que o texto da Concordata é impreciso, abrindo campo para a ampliação do benefício, que poderia ser aplicado não só aos templos, mas a todos os negócios da Igreja Católica, que é dona de editoras, rádios e escolas. Além disso, que medidas legais poderão ser tomadas pelo Estado brasileiro no caso de mau uso da isenção fiscal de receitas e ativos da Igreja Católica?
No que se refere à manutenção do patrimônio cultural da Igreja Católica com dinheiro dos contribuintes – muitos dos quais, diga-se, são ateus ou seguidores de outras religiões -, os problemas jurídicos são ainda mais graves. O artigo 19 da Constituição é preciso ao determinar que o Estado não pode “subvencionar igrejas”. E, mesmo que pudesse, faz sentido destinar recursos públicos para o custeio de bens que, segundo a Concordata, permanecerão sob gestão, custódia e salvaguarda de ordens religiosas? A Igreja Católica terá de se submeter à fiscalização dos Tribunais de Contas, como a lei brasileira prevê, ou gozará de autonomia, valendo-se da condição ambígua de ser formalmente subordinada ao Estado do Vaticano?
Por fim, ao eximir a Igreja Católica de obrigações trabalhistas, classificando a relação jurídica de padres e freiras como “vínculo não empregatício”, sob a justificativa de que eles exercem uma função “peculiar”, de “caráter apostólico, litúrgico e catequético”, a Concordata comete dois pecados jurídicos. Além de dar tratamento privilegiado à Igreja Católica enquanto empregadora, violando o princípio da igualdade das partes perante a lei, ela não pode passar por cima dos dispositivos do artigo 5º da Constituição que asseguram o livre acesso à Justiça e determinam que “a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça ao direito”. Como é “cláusula pétrea”, o artigo não pode ser revogado.
Evidentemente, as chancelarias do Brasil e do Vaticano estavam conscientes desses problemas quando negociaram a Concordata. Talvez tenha sido por esse motivo que o texto tenha ficado muito retórico. A retórica parece ter sido a estratégia para tentar contornar os problemas jurídicos mais gritantes do acordo firmado por Lula e Bento XVI.
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